A luta por uma escola pública, democrática e centrada no senso crítico

O Brasil vive em um enigma, marcado por insegurança global e crises econômicas, desencadeadas pela ruptura da ética na política. As atuais notícias sobre as futuras alterações e reformas estruturais preocupam muito a sociedade. Tais iniciativas como o programa “Escola sem Partido”; divisão do ensino médio por áreas; eliminação da obrigatoriedade da filosofia, artes e sociologia no ensino médio; PEC 241; a escola neutra ideologicamente; a predominância de um “curriculum” estandardizado e tecnicista; a permissão para um ente amador, portador de “notório saber”, lecionar em qualquer cátedra e outras barbáries.
Todas essas ações governamentais (projetos e emendas constitucionais) têm o intuito de diminuir os investimentos em educação e tornar os discentes cada vez mais acríticos e especialistas. Tais condutas evidenciam mais uma maquiavélica estratégia de um Estado tirano, um afronto à democracia brasileira e um reforço ao determinismo.
Já na Grécia Antiga a educação (“Paidéia”) era vista como prioridade política e o único meio de tornar o homem um cidadão virtuoso, sábio, ético, feliz e capaz de governar a “pólis”. Com a Idade Moderna, mais precisamente pós-revolução industrial, a educação passou a ser uma ferramenta de ideologização e forma de condicionamento moral. A serviço dos interesses políticos e econômicos da classe dominante, as escolas passaram a se preocuparem em aprimorar a infraestrutura da sociedade industrial e abastecer o mercado com mão-de-obra em excesso, obediente e tecnicista. Fomentar entes acríticos e capazes de marcharem em direção à lógica neoliberal é o objetivo global do sistema educacional.
A escola, como um aparelho ideológico, tem a função “mascarar” a realidade e instruir a massa para suprir as demandas da sociedade industrial. A educação “positivista” é marcada pela “produção” de um indivíduo técnico, gélido, egocêntrico, racionalista, especialista, normativo e telespectador do real. Karl Marx já alertava que a especialização do saber levará o homem à “idiotice” (alienação).
As escolas vivem em um profundo e intenso conflito ideológico. De um lado, lhe cabe a função de promover, difundir a ideologia do Estado e nos instruir para uma função específica na sociedade do “controle”. Por outro lado, seu maior desafio está em fundar um ensino com caráter público, justo, democrático, participativo e de qualidade, que atue de forma eficiente na emancipação do sujeito, na diminuição das desigualdades sociais e no combate ao analfabetismo político.
Uma formação concreta e justa deve ser aquela em que seu dinamismo exponha as contradições que estão presentes na sociedade, ou seja, aquela que pressupõe o princípio de não-identidade entre realidade e conceito, entre forma social e existência humana. A construção de um sujeito crítico e autônomo passa pelo estranhamento frente ao que está colocado e na compreensão contextualizada de uma diversidade de saberes interligados. Devemos lutar por uma educação democrática, holística e humanizada, que valorize o raciocínio dialético e respeite o livre-arbítrio e ipseidade dos entes.
Estamos vivendo em uma sociedade completamente cartesiana e fragmentada, onde a educação pública brasileira é “chefiada” por uma corja de capitalistas ortodoxos e despreparados para a atividade mais nobre do mundo, que é educar. Kant dizia que: “ educar e governar são as atividades mais difíceis da humanidade”, visto que exigem muita sabedoria, comprometimento e ética. Platão salienta que é somente por meio de uma educação que podemos preparar um cidadão virtuoso e apto a construir uma nação democrática e justa. Concordando com Antônio Gramsci é uma grande ilusão acreditar que o Estado tem como missão educar a massa para o “filosofar”, refutar a política vigente e questionar os aparelhos ideológicos. O que se almeja é instigar os discentes a imergirem no “senso comum”; perpetuarem o “status quo”; adaptar-se à cultura da servidão e a idolatrarem o opressor.
A educação básica pública, com suas diretrizes políticas e normativas (moral), contraria os princípios ideológicos da verdadeira democracia e contamina a pureza e magnitude de todos os conhecimentos conquistados pela filosofia, psicologia, neurociência, pedagogia e sociologia.  Meus heróis: Paulo Freire, Rubem Alves, Comênio, Rousseau, Platão, Kant, Marx, Gramsci, Adorno, Marcuse, Nietzsche e Vygotsky estão revirando no túmulo diante do que restou da educação básica brasileira.
Há décadas que a sociedade brasileira não tem seu direito garantido pela Constituição Federal:                “ Educação de qualidade, democrática e ética” a todos”. A classe operária apenas conta com uma precária instrução padronizada e em massa, a fim de desenvolver habilidades e competências específicas e pertinentes à “indústria cultural”. O mundo corporativo vê na educação “fordista” uma importante via de coerção social, padronização cultural e de ganhos econômicos; graças ao excesso de mão-de-obra técnica.
Para o renomado psicanalista Erick Fromm a sociedade contemporânea está direcionada à máxima produção e dirigida por tecnologias da informação “em tempo real”, que contribuem na transformação do homem em parte de uma máquina. O progresso científico e tecnológico não surgiu com a proposta de aliviar o “fardo” do homem, mas aliená-lo e impedir a manifestação da “alma inteligível”, utilizando-se para tal de “fetiches”. Há um intenso e perene esforço das escolas para manter os discentes condicionado moralmente, distraído, passivo e com poucas virtudes. Estamos prestes a nos deparamos com uma juventude incapaz de distinguir a barbárie da arte.
É um dever das escolas criarem situações em que a arte e filosofia possam contribuir para a construção de um ente reflexivo, capaz de religar as ciências e criar sua própria história de vida, às luzes da liberdade e da ética.  Não podemos permitir com que os políticos aprovem esses projetos de leis esdrúxulas e transformem “nossas escolas” em quartéis, que cerceiam a liberdade de cátedra, colocam mordaça aos intelectuais orgânicos e manipulam ideologicamente nossos jovens e docentes a acreditarem na nefasta retórica da direita progressista.
Os projetos de leis e as reformulações do ensino médio visam a doutrinação dos alunos. É uma coerção social aos docentes, impedindo esses de problematizarem, contextualizarem os conteúdo curriculares com o contexto histórico, social, econômico, político e religioso. Impedir o ato de compartilhar saberes e vivências com os alunos nossas concepções, juízos e valores é censura e um reforço do niilismo. O sistema educacional contemporâneo é um reforço da moral neoliberal, que uniformiza o conhecimento e distancia os discentes de sua natureza reflexiva e artística.
As escolas públicas brasileiras encontram-se em um verdadeiro estado de calamidade, dentre suas limitações estão: obsoletismo em métodos e técnicas de ensino;  gestão amadora e burocrática; infraestrutura precária; a maioria do corpo docente acrítico e pouco preparado intelectualmente; má remuneração dos funcionários ligados à educação básica; pouco envolvimento das comunidade e famílias nas políticas e ações educacionais; despreparo total para receber alunos portadores de necessidades especiais (“inclusão”);  ausência de projetos de iniciação científica (pesquisas aplicadas) e uma grande quantidade de “dinossauros” à espera da  tão sonhada aposentadoria integral.
Dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) em 2015, com 72 países avaliados, posicionou o Brasil em 63º em Ciências, 59º em Leitura e 66º em Matemática. Em Ciências e em Leitura, Portugal, Espanha, Chile, Uruguai e Costa Rica. Em Matemática, todos esses superaram o Brasil e a diferença entre a média do país e a do Chile é de 46 pontos. Comparado à última edição do Pisa (2012), o Brasil estagnou em Ciências e Leitura, mas caiu em Matemática. Em Ciências, mais da metade dos estudantes brasileiros (51%) está abaixo do nível 2 em Leitura, que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) considera o adequado para exercer a cidadania. O Brasil continua muito aquém dos países desenvolvidos e atrás de inúmeros países em desenvolvimento, incluindo diversas nações da América Latina. Vale ressaltar, ainda, que o país apresentou um recuo nas médias de todas as três áreas analisadas,
Professores especialistas de disciplinas, desprovidos de vocação e senso crítico, pouco contribuem para a construção de uma nação mais justa e na formação de alunos críticos e participativos politicamente. As escolas públicas estão carentes de educadores de seres humanos (“intelectuais orgânicos”) que lutem contra o esse ineficiente sistema de ensino público. É preciso refutar os conteúdos disciplinares, quebrar os paradigmas científicos, criar novos métodos de ensino e instigar os alunos a serem autodidatas.
É preciso mostrar aos políticos que um país democrático e ético só poderá ser construído com entes críticos, livres, corajosos e preparados intelectualmente para caminharem na contramão. Nunca haverá igualdade social enquanto existir a escola do pobre e a do rico.  Não conheço nada mais majestoso do que lutar, pelo que a maioria julga impossível. Ver o brilho nos olhos dos aprendizes ao tomarem as rédeas da própria vida, com sabedoria e ética não tem preço.
Almejo que os mesmos alunos que, com bravura e persistência, ocuparam as escolas estaduais e impediram a reorganização escolar também lutem para a criação de leis e projetos políticos capazes de contribuírem para a construção de uma educação pública de qualidade. Para tal desafio podemos sugerir: o fim da progressão continuada (“aprovação automática”); obrigatoriedade dos filhos dos políticos a estudarem em escolas públicas; escola em tempo integral para todos os alunos do ensino básico; aulas de dependência e reforço; o fim da obrigatoriedade do ensino médio; presença da filosofia e artes em todas as disciplinas e séries do ensino básico e a tão sonhada volta da autonomia de decisão do docente.
Enquanto existir uma mãe preocupada com o futuro de seu filho; um aprendiz querendo questionar; um educador apaixonado pelo ofício e um filósofo na escola ainda restará a esperança de uma educação democrática, ética, gratuita e apta a ensinar tudo a todos.

(Prof. Rodrigo Legrazie é matemático, engenheiro, filósofo, pedagogo, escritor, consultor, pesquisador e professor efetivo da cátedra de Filosofia da E.E. Padre Francisco Rigolin.)